quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Sociologia

O caldo transbordou (Prof. Zilcer Zimmermann Coura)

Como podemos interpretar o atual choque de forças em confronto na cidade do Rio de Janeiro entre, de um lado, as forças da lei e do Estado, e, de outro, os traficantes, que anos a fio desafiaram a legitimidade dos aparelhos de Estado? O que teria acontecido agora de diferente para que de uma hora para outra o governo do Estado respondesse energicamente e a contento, de forma profissional, competente, às diversas intimidações dos bandidos, que em outras circunstâncias foram tão virulentas quanto esta última?

Como explicar também o atual quadro de euforia generalizada que tomou conta da sociedade carioca? Percebe-se no ar, nas faces das pessoas, um estado de excitação, provocado, por um lado, ainda pelo medo e pelo susto das tragédias, por outro, por um sentimento de alívio, misto de perplexidade e tensão. Diante deste quadro de aparente dormência coletiva, fica ainda no ar uma questão não respondida, ou, na verdade, mal formulada: Por que não se tentou isso antes? Para que esperar tanto tempo?

Para tentar dar cabo dessas problematizações iniciais vamos adotar como ponto de partida da reflexão o modelo baseado na teoria dos jogos cujos pressupostos se baseiam, em primeiro lugar, na interação estratégica entre diversos agentes (jogadores). Em segundo lugar, o modelo deverá traçar extensivamente as possíveis ações e estratégias que podem ser adotadas pelos diversos jogadores num determinado cenário de concorrência iminente. O importante é que o modelo, na medida em que incorpore os elementos realmente significativos e sua estrutura seja coerente com a forma pela qual se processa a interação estratégica, sirva como um guia eficiente para o entendimento de fenômenos da vida econômica, empresarial e social.

Nas palavras de Fiani,

“O leitor não deve perder de vista que, ao modelar um jogo, o que se está fazendo é representar uma situação de interação estratégica de forma abstrata, isto é, focalizando-se apenas aqueles elementos considerados mais importantes para explicar como os agentes (jogadores) interagem entre si. Assim, qualquer modelo sempre será uma representação muito simplificada de uma realidade infinitamente mais complexa” (Fiani, 2006, p. 43)

É isso que vamos realizar a partir de agora, isto é, definir quem são os jogadores (no nosso caso, as instituições do Estado do Rio de Janeiro representado pela figura de Sérgio Cabral, de outro lado, as facções de traficantes) e as possíveis ações que uns e outros podem acionar nas diferentes situações de interação. Também é importante frisar que as estratégias são guiadas por escolhas racionais, portanto, não levam em consideração emoções ou sentimentos. São ações que otimizam meios e fins, apenas.

Como esta hipótese visa apenas explicar muito que grosseiramente como uma determinada teoria pode nos auxiliar a entender as tomadas de decisão em um processo social complexo, restringiremos nosso exemplo a situações simples que não ultrapassam duas ou três ações possíveis na interação estratégica.

Agente 1: as facções de traficantes. Ambiente: atuação dentro dos territórios das comunidades carentes. Situação de jogo: cerco e ocupação da polícia nos morros cariocas. Estratégias previstas: a) a polícia sairá ou não sairá das comunidades; b) fuga em massa, submissão, perda de controle e prestígio no morro; c) retaliação, intimidação, uma vez que em outras circunstâncias isso aconteceu e o poder público se mostrou inofensivo. Os traficantes estrategicamente chegaram a conclusão de que a polícia não abandonará os morros – ou foram levados a acreditar nisso – e de que se eles não fizessem nada corriam o risco de perder seu poder. Solução: vandalismo, deflagração da violência urbana e confronto aberto com a polícia. A estratégia adotada só não previra a resposta enérgica com a qual o poder público respondera imediatamente. Erro de cálculo não previsto no momento de traçar as possíveis jogadas dos atores.

Agente 2: instituições do poder público. Ambiente: a) conter o avanço da criminalidade na cidade; b) pressão da sociedade (internacional também) para dar um fim à situação; c) ônus político a ser pago pela inércia ou até mesmo pela perda do jogo. Situação de jogo: invadir os morros e tomar seu controle das mãos dos traficantes. Estratégias previstas: a) a situação é controlável, configurando-se apenas como reações espasmódicas de desespero por parte dos bandidos quanto à instalação das UPP’s, sendo suficiente fazê-los recuar aos seus territórios; b) posso resolver lutar e perder a batalha, enfraquecendo a legitimidade das instituições públicas; c) posso ainda lutar e vencer. Obviamente, outras variáveis importantes, não consideradas aqui por conta da simplificação, entrariam no cálculo: poderio bélico, dinheiro, contingente de homens, coesão institucional etc.

Enfim, todas estas possíveis estratégias são estudadas, combinadas entre si, para se chegar à disposição de uma série de ações que podem ser mobilizadas dependendo da ação adotada pelo oponente.

No caso do governo do Rio de Janeiro, enquanto a bandidagem ficava confinada nos morros, fazia-se vista grossa ao que ali rolava nas comunidades, sofrimento, mortes, estupros, violência etc. Estrategicamente não era interessante do ponto de vista econômico, político, institucional, social, cultural, agir de outra forma naquelas circunstâncias.

A partir do momento em que as ações do tráfico invadiram o asfalto, começaram a cooptar os elementos das classes médias, introduziram-se vicariamente na burocracia de Estado, estabeleceram relações de aliança com os aparelhos policiais, atingiram a extrema audácia de inclusive cravejar e assaltar instalações militares, pior (a gota d’água) – aqui vemos o erro fatal no cálculo dos chefes do tráfico –, tentaram afrontar a legitimidade das instituições do aparelho de Estado, imaginando-se arrogantemente superiores a elas, estas ações deletérias provocaram uma reação em cadeia no Estado. Tornara-se então insustentável do ponto de vista político agüentar mais uma humilhação. O Estado se sentindo acuado não pensou duas vezes: é hora de acionar força máxima. Homicídios, assassinatos, violência, tráfico de drogas, cooptação, aliciação, vitimas inocentes mortas, tudo isso é suportável pelo sistema, o que não pode se perder de vista é que quem manda e dita as regras do jogo, é o Estado.

Respondendo, então, ao nosso primeiro questionamento, aqui se encontra a verdadeira razão do revide do Estado, a descomunal força com a qual o Estado do Rio de Janeiro se voltou para responder aos atos de violência. A “desordem da ordem” é o Estado que faz. Ele é a própria ordem/desordem. Se este deixa acontecer um pouco de discórdia, bagunça, é porque é ele que detém de fato e de direito o monopólio da violência. No entanto, que não se tente inverter a posição de comando, desafiar o chefe supremo!

Afronte-me pelos flancos, não de frente. Pode atuar na ilegalidade, na clandestinidade, desde que não ouse colocar-se como rival em pé de igualdade na conquista pela hegemonia do poder.

Não tente me impor regras, pois eu sou a própria regra, a própria força. Não pode existir duas soberanias comandando um mesmo Estado. Só uma deve prevalecer. E de fato isso é a mais pura verdade. O Estado é o poder absoluto dentro de um território, porém, um mal necessário – no entender dos liberais ortodoxos. Seu poder de violência é descomunal frente à população em geral e às instituições da sociedade civil. A não ser, é claro, se existe uma facção da elite desejosa de se apossar do poder, compatível ou com alianças bastante sólidas para que tenha a coragem de declarar uma guerra civil. Obviamente, os traficantes de drogas não tinham a intenção de apossar-se do poder legal das instituições do Estado, mas foram suficientemente impetuosos e destemidos intimidando-as abertamente. Seu erro fatal.

Diante do exposto, percebe-se que não restou outra opção ao Estado que não a retaliação ostensiva e o combate em campo inimigo. Ele foi obrigado a sair de sua inércia atávica e tomou a atitude que se esperava dele há muito tempo. Estrategicamente o Estado foi coagido a adotar tal postura. Se havia uma agência de inteligência investigando as ações das quadrilhas, como alegado recentemente pelas autoridades, no entanto, ela não tinha a intenção declarada de tomar os morros e assim assumir a responsabilidade por mais uma matança. Coincidentemente, apenas, esta opção tornou-se viável.

Que a lição sirva então de conselho para as futuras quadrilhas: não tente colocar em risco a soberania do monopólio da violência e da legitimidade dos órgãos de Estado, pois eles têm força. Muita força. Como bem demonstrou o recente episódio, se provocado o leviatã acorda. O lema então é: “ado, ado, ado ... cada um no seu quadrado”. Ou seja, se cada um ficar na sua, tudo fica numa “nice”. Como antes: cada um cuidando de seu território e da sua respectiva partilha no espólio público.

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